quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Eugénia Cunhal - A carta

* Eugénia Cunhal

A CARTA

A sala era pequena. Com uma claridade agradável que entrava pela janela aberta para a rua. Uma rua que tinha o privilégio de ser chamada avenida.  Talvez porque algumas árvores ali haviam crescido, dando-lhe um toque de dignidade. Como se as árvores e casas pertencessem à mesma família numa convivência íntima.

 Estava sentada numa pequena cadeira estofada, vestida com um roupão. Uma manta de xadrez chegava-lhe as pernas, mesmo quando o calor já despertara.

Mãos cruzadas uma na outra não paravam de enlaçar e desenlaçar os dedos, numa linguagem muda, de quem raramente tem ouvidos que lhe oiçam as palavras. Como contas do seu rosário de vida, esperando a presença fugaz de uma ou outra pessoa que apareça. Desde que o filho lhe lera a carta registada do senhorio, que o carteiro trouxera inesperadamente uma manhã, nunca mais tivera um dormir descansado. Há quarenta e seis anos que ali vivia. Já o filho nascera, quando se impôs o sonho de deixar o pequeno quarto para ter uma casa sua. Renda cara. Paga com o magro salário do marido. Das bilhas de leite que ia distribuindo pelas muitas escadas que subia e descia. Todos os dias da semana. E dos quartos que alugava, uma vez que lhe sobrava espaço, para além do seu quarto e do quarto do menino.

Começou por arranjar um e outro móvel colocando-lhes em cima  pequenos naperons de  crochet tecidos em bocadinhos de noite roubados ao sono. Mesmo assim, não conseguia que perdessem a frieza que com eles viera da loja, onde viviam ao lado de muitos outros, precisamente iguais, que iam partindo para outras mãos. Parava a olhar gulosamente objectos exibidos nas montras. Aos poucos foi trazendo para casa uma jarra enfeitada com flores de cores alegres, uma pomba de loiça, uma moldura prateada para a fotografia do seu casamento, que habitava, tristemente, há longos anos uma gaveta.  

E, assim, a casa foi ficando cada vez mais sua no sentir.

Agora há que vender esta tralhada toda, disse o filho. O prédio deve ser deitado abaixo e põem-nos para aí num sítio qualquer. É o costume, quando as rendas são baixas como esta.

Tralhada. A palavra ficou a doer-lhe como doem as palavras que denigrem alguém ou alguma coisa que se ama. E havia uma outra dor. Como deixar aquele raminho que da árvore que nascera mesmo em frente da janela lhe vinha fazer companhia. E as vizinhas que foram envelhecendo consigo, adoecendo consigo, ao longo dos anos. Mas que ainda conseguiam esforçadamente subir o terceiro andar, de vez em quando, para lhe cortar o silêncio pesado na solidão dos dias. E lhe traziam noticias das ruas e das gentes que faziam parte da sua já longa vida.

Há muitas maneiras de matar.
E de morrer.

in Escritas de Esferográfica

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