sábado, 18 de outubro de 2014

Eugénia Cunhal - Famílias

* Eugénia Cunhal

FAMÍLIAS

Estava sentado. Olhos pregados num livro cujas folhas ia passando devagar. As mãos, ligeiramente trémulas, dificultavam a leitura. Estavam assim, desde a crise que o tinha atirado, primeiro para a cama. O médico abanara a cabeça: esse coração não está nada bem.

Conhecia de cor todos os cantos da sala semi obscura da cave aonde vivia. As parcas economias que ia conseguindo amealhar desde o dia da reforma e da morte da companheira tinham um único destino. Livros. Que já não cabiam nas estantes e se amontoavam pelo chão. Através deles, ia partilhando outras vidas, outras histórias. Revoltado, oprimido com as personagens de umas, com outros peito aberto para a vida, mãos estendidas em feitos imaginários negados ao seu corpo cansado e doente. E, além do mais ofereciam-lhe a companhia que o compensava da ausência daqueles de quem  seria óbvio esperar uma presença, um telefonema. Ao menos.

As filhas abriram a porta da rua, entraram e disseram: o pai não pode viver aqui sozinho. Não chegou ao fim da frase que estava a ler. Fingiu que não
ouviu, de tal forma eram inesperadas aquelas palavras que pareciam revestir-se de uma preocupação e de um súbito carinho. Claro, o pai não pode viver aqui sozinho - repetiram.

Será que ... pensou, sabendo que uma das filhas morava num andar amplo e construído há pouco. Será que ...

Durante as próximas semanas entregou-se ao sonho. Que bom, estar dia a dia com o neto mais pequeno. Um menino certamente inteligente, curioso. Às vezes, as gerações mais novas estão mais receptivas. Mais generosas. Saibamos nós, os mais velhos, chegar-lhes ao coração.

Vamos, pai. Como sabe, não o podemos deixar a viver aqui. Juntámo-nos todos e arranjámos-lhe um Lar. Não se preocupe. A comida é boa, o quarto é só para si, tem uma grande janela e muita luz. Verá que não lhe vai faltar nada.

Levaram-no. Na mala apenas a roupa e os medicamentos. Nem uma única vez o foram visitar. E assim, ia definhando naquele quarto silencioso donde saía apenas para tomar as refeições.

Uma manhã, estranhando-lhe a ausência ao pequeno-almoço, uma empregada foi encontrá-lo deitado de olhos fechados. Então, Sr. Armindo, que preguiça é essa. Mas os olhos não voltariam a abrir-se.

Os filhos compraram-lhe um caixão feito de uma madeira boa e cara, encomendaram uma grande coroa de flores, com uma fita roxa que tinha escrito em letras douradas a palavra SAUDADE.

Acompanharam-no com lágrimas ao sítio que chamaram de última morada. E as pessoas comentavam como era bonito saber como aquele homem tinha sido bem cuidado. Até ao fim.

Os livros foram vendidos a peso. Nunca se soube o destino que levaram.

 in Escrita de esferográfica

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

um poema de Eugénio de Andrade

* Eugénio de Andrade

Diremos prado bosque
primavera,
e tudo o que dissermos
é só para dizermos
que fomos jovens

Diremos mãe amor
um barco,
e só diremos
que nada há
para levar ao coração

Diremos terra mar
ou madressilva,
mas sem música no sangue
serão palavras só,
e só palavras, o que diremos.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Eugénia Cunhal - A carta

* Eugénia Cunhal

A CARTA

A sala era pequena. Com uma claridade agradável que entrava pela janela aberta para a rua. Uma rua que tinha o privilégio de ser chamada avenida.  Talvez porque algumas árvores ali haviam crescido, dando-lhe um toque de dignidade. Como se as árvores e casas pertencessem à mesma família numa convivência íntima.

 Estava sentada numa pequena cadeira estofada, vestida com um roupão. Uma manta de xadrez chegava-lhe as pernas, mesmo quando o calor já despertara.

Mãos cruzadas uma na outra não paravam de enlaçar e desenlaçar os dedos, numa linguagem muda, de quem raramente tem ouvidos que lhe oiçam as palavras. Como contas do seu rosário de vida, esperando a presença fugaz de uma ou outra pessoa que apareça. Desde que o filho lhe lera a carta registada do senhorio, que o carteiro trouxera inesperadamente uma manhã, nunca mais tivera um dormir descansado. Há quarenta e seis anos que ali vivia. Já o filho nascera, quando se impôs o sonho de deixar o pequeno quarto para ter uma casa sua. Renda cara. Paga com o magro salário do marido. Das bilhas de leite que ia distribuindo pelas muitas escadas que subia e descia. Todos os dias da semana. E dos quartos que alugava, uma vez que lhe sobrava espaço, para além do seu quarto e do quarto do menino.

Começou por arranjar um e outro móvel colocando-lhes em cima  pequenos naperons de  crochet tecidos em bocadinhos de noite roubados ao sono. Mesmo assim, não conseguia que perdessem a frieza que com eles viera da loja, onde viviam ao lado de muitos outros, precisamente iguais, que iam partindo para outras mãos. Parava a olhar gulosamente objectos exibidos nas montras. Aos poucos foi trazendo para casa uma jarra enfeitada com flores de cores alegres, uma pomba de loiça, uma moldura prateada para a fotografia do seu casamento, que habitava, tristemente, há longos anos uma gaveta.  

E, assim, a casa foi ficando cada vez mais sua no sentir.

Agora há que vender esta tralhada toda, disse o filho. O prédio deve ser deitado abaixo e põem-nos para aí num sítio qualquer. É o costume, quando as rendas são baixas como esta.

Tralhada. A palavra ficou a doer-lhe como doem as palavras que denigrem alguém ou alguma coisa que se ama. E havia uma outra dor. Como deixar aquele raminho que da árvore que nascera mesmo em frente da janela lhe vinha fazer companhia. E as vizinhas que foram envelhecendo consigo, adoecendo consigo, ao longo dos anos. Mas que ainda conseguiam esforçadamente subir o terceiro andar, de vez em quando, para lhe cortar o silêncio pesado na solidão dos dias. E lhe traziam noticias das ruas e das gentes que faziam parte da sua já longa vida.

Há muitas maneiras de matar.
E de morrer.

in Escritas de Esferográfica

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

alberto caeiro - um dia de sol, um dia de chuva

* Alberto Caeiro

Um dia de chuva é tão belo como um dia de sol. 

Ambos existem; cada um como é. 

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Joaquim Pessoa - Amélia dos olhos doces

* Joaquim Pessoa

Amélia dos Olhos Doces
quem é que te trouxe
grávida de esperança?
Um gosto de flor na boca.
Na pele e na roupa
perfumes de França.

Cabelos cor de viúva.
Cabelos de chuva.
Sapatos de tiras
e pões, quantas vezes
não queres e não amas
os homens que dormem
contigo na cama.

Amélia dos Olhos Doces
quem dera que fosses
apenas mulher.
Amélia dos Olhos Doces
se ao menos tivesses
direito a viver!

Amélia gaivota
amante ou poeta.
Rosa de café.
Amélia gaiata
do Bairro da Lata.
Do Cais do Sodré.

Tens um nome de navio.
Teu corpo é um rio
onde a sede corre.
Olhos Doces. Quem diria
que o amor nascia
onde Amélia morre?

Cabelos cor de viúva.
Cabelos de chuva.
Sapatos de tiras
e pões, quantas vezes
não queres e não amas
os homens que dormem
contigo na cama.