terça-feira, 24 de outubro de 2017

Mário Cesariny - Mário Cesariny

* Mário Cesariny 


cinepovero2009

Mário Cesariny :: You Are Welcome to Elsinore (Entre nós e as palavras o nosso dever falar)




Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte      violar-nos      tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas      portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício
   
Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida      há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição
   
Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras e nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita
   
Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar

 in «Pena Capital», 1957.


  O título do poema remente para o Hamlet de Shakespeare, quando no Ato II, cena II, Hamlet dá as boas vindas, no castelo de Elsinore, aos velhos amigos Rosencrantz e Guildenstern, convocados pelo Rei sob o pretexto da «loucura» do Príncipe e destinados a ser os seus carrascos (sem eles o saberem) para serem afinal (sem eles suspeitarem) as suas vítimas.

[…] A referida obra do dramaturgo inglês foi aliás foi aliás reiteradamente invocada para assinalar obliquamente a miséria da «prisão» do Portugal salazarista, e baste para isso lembrar o lugar explicitamente nomeado por O’Neill – No Reino da Dinamarca (no diálogo entre Hamlet e os seus amigos/convidados, o príncipe dirá a uma dada altura da conversa que «Dinamarca é uma prisão»). Dinamarca é assim o Portugal onde o Surrealismo português quis materializar o seu sonho de Liberdade, Desejo, Amor e Poesia, e Elsinore a Lisboa que foi o seu território eletivo, a cidade amada/abominada por O’Neill e contrasposta a um Paris «onde o amor encontra os seus caminhos» (o Paris de Nadja por exemplo), a cidade de Palagüin de Carlos Eurico da Costa ou, enfim, a cidade do poema «Crónica» de Fernando Lemos. […]

      O poema, assim, define como poucos o que foi, o que quis ser e o que não pode ser a intervenção surrealista em Portugal, ao mesmo tempo que assinala os limites que à reabilitação da realidade e à nossa própria realização impõem aqueles que fizeram de Elsinore uma prisão, e da Dinamarca toda um território de podridão e de mentira; mas também aponta para a celebração do poder libertador da Palavra, instrumento de evasão da realidade real e de criação duma poética onde melhor nos instalarmos, porque, afinal, como lembrava o próprio Cesariny em 1949 no «Final de um Manifesto»,no círculo da sua ação, todo o verbo cria o que afirma.
          
Perfecto E. Cuadrado Fernández, Século de Ouro. Antologia Crítica da Poesia Portuguesa do Século XX.Organização de Osvaldo Manuel Silvestre e Pedro Serra. Braga/Coimbra/Lisboa, Angelus Novus & Cotovia, 2002.            

http://folhadepoesia.blogspot.pt/2013/07/you-are-welcome-to-elsinore-cesariny.html
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cinepovero2009

VIDEO_POEMA #04


Mário Cesariny (1923-2006)
"You Are Welcome to Elsinore" in «Pena Capital», 1957.
Poema dito pelo próprio.


Música: Excerto do 3º Andamento da Sinfonia nº 3 de Henrik Górecki («Symfonia Pieśni Żałosnych» - Sinfonia das Canções Tristes).

Clip no fim: Fragmento da sequência final do filme de Michelangelo Antonioni, «Zabriskie Point»

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