sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Cecília Meireles - Dia de chuva

* Cecília Meireles


As espumas desmanchadas
sobem-me pela janela,
correndo em jogos selvagens
de corça e estrela.
Pastam nuvens no ar cinzento:
bois aéreos, calmos, tristes,
que lavram esquecimento.
Velhos telhados limosos
cobrem palavras, armários,
enfermidades, heroísmos...
Quem passa é como um funâmbulo,
equilibrado na lama,
metendo os pés por abismos...
Dia tão sem claridade!
só se conhece que existes
pelo pulso dos relógios...
Se um morto agora chegasse
àquela porta, e batesse,
com um guarda-chuva escorrendo,
e, com limo pela face,
ali ficasse batendo
— ali ficasse batendo
àquela porta esquecida
sua mão de eternidade...
Tão frenético anda o mar
que não se ouviria o morto
bater à porta e chamar...
E o pobre ali ficaria
como debaixo da terra,
exposto à surdez do dia.
Pastam nuvens no ar cinzento.
Bois aéreos que trabalham
no arado do esquecimento.


(in Cecília Meireles, Antologia Poética, Relógio d'Água)

Sem comentários: