quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Angola e Francisca Van Dunem

FRANCISCA VAN DUNEM IN
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Fez todos os estudos liceais em Luanda?
Sim, no liceu feminino Guiomar de Lencastre.

Quando pensou em optar por Direito, isso não terá sido um grande motivo de alegria na família...
Foi terrível. Eu tenho uma família com uma estrutura muito patriarcal, em que o irmão mais velho do meu pai, o meu tio José, funcionava como o verdadeiro chefe da família. O seu filho, Fernando, que é meu padrinho de batismo e foi embaixador de Angola em Portugal, tinha vindo para Coimbra estudar Direito e exilou-se, saindo de Portugal numa leva de estudantes das colónias no início dos anos 60. O meu tio tinha uma grande desconfiança em relação às possíveis consequências das vindas para a então “metrópole” estudar Direito. Achava que o ambiente académico na área do Direito acabava por nos associar a atividades políticas. Sobretudo achava que eu, sendo mulher, não devia correr esse risco. E depois, como o meu avô tinha sido deportado várias vezes, por razões políticas, o meu tio entendia que devíamos tirar cursos técnicos, porque nos permitiam trabalhar em qualquer lugar. Devíamos ser médicos, engenheiros e não nos metermos no que achava serem aventuras perigosas.

Como é que conseguiu convencer a família?
Com 15 anos, ao chegar ao sexto ano do liceu, inscrevi-me na alínea E, que era a de Direito. Cheguei a casa, disse ao meu pai, que ficou triste e disse-me que eu tinha de ir falar ao meu tio. E eu fui.

E o seu tio...
O meu tio reagiu como seria de prever, mas não me proibiu. Perguntou-me coisas como: “A senhora pensa que fazer um curso de Direito é fazer alguma coisa? A senhora não tem ideia de que o curso de Direito não serve rigorosamente para nada? A senhora não acha que um curso de Medicina, de Engenharia, de qualquer outra coisa seria muito mais útil? Os senhores têm devaneios...” Eu ouvi respeitosamente, como devia fazer, e no fim ele disse-me: “Bem, a senhora está inscrita, está inscrita. Só veio cá dizer que se inscreveu.” Eu aquiesci, dando-lhe razão, e fui para casa de cabeça baixa. Esperava que me proibisse. Que me obrigasse a alterar a inscrição. A sua reação desorientou-me. Tinha levado todos os argumentos para uma batalha que não chegou a acontecer. O meu tio viveu cá os últimos anos da vida dele e tinha comigo uma relação de intensa afetividade. Gostava muito de mim, e eu gostava muito dele. A circunstância de me ter atrevido a afirmar-me contra o que sabia ser a sua vontade, de lhe ter ido dizer o que ia fazer, deu-lhe a ideia de que eu tinha a coragem dele. E ficámos muito próximos. Quando comecei a trabalhar no MP, não tinha cuidado com os registos oficiais: a nomeação, as promoções que saíam no “Diário da República”. Ele organizava tudo numa pastinha que me entregou e que se encarregava de atualizar. Depois, foi para Luanda e acabou por morrer lá. Vivemos aqui uma relação de uma enorme proximidade. Foi uma pessoa de quem eu na infância tinha medo e com quem depois acabei por ter uma relação afetiva muito profunda.

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P. - Não havia Direito em Luanda. O choque foi muito grande quando chegou a Lisboa?
R. - O choque foi tremendo. Tinha 17 anos. Luanda era uma cidade aberta. Lisboa era uma cidade fechada e sombria nesse tempo. Fechada nos costumes, havia grupos muito fechados, e era uma cidade cinzenta. Eu vinha de Luanda descontraidamente. As pessoas estavam habituadas a falar com toda a gente, a vestir-se sem nenhuma preocupação, não só pelas questões do clima mas por influência da África do Sul e de Moçambique. As raparigas tinham uma forma de vestir mais solta. Eu trazia umas saias que eram curtíssimas para cá, mas eu não sabia. Não tinha a mínima noção.

P. - Era o tempo em que uma mulher era mal vista se ia a um café...
R. - Não. Nessa altura ia-se muito aos cafés. Havia muitos cafés de estudantes. Mas até a isso eu não estava habituada, àquele ambiente escuro em que as pessoas estavam vergadas sobre os livros, a fumar. Naquele tempo fumava-se muito. Era um ambiente um pouco surreal, era como se entrasse de repente num filme fantástico. Eu estava habituada ao ar livre, às esplanadas, ao sol... Essa entrada inicial foi de facto um pouco traumática.
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P.- Ele decidiu regressar e vive hoje em Angola. E o seu irmão João decidiu também regressar a Luanda para o apoiar. Como é que viu essa decisão?
R. - O João era a minha alma gémea. Eu vi com bons olhos o regresso do João. Embora ele tivesse uma carreira bem sucedida na BBC, chefiava a secção de língua portuguesa, sentia nele sempre um espaço de vazio. E o grande espaço de vazio que tinha era Angola. Angola fazia-lhe falta. Tinha necessidade física. E a sua ida acabou por ser associada à ida do Che.

P. - E, apesar de serem almas gémeas, a Francisca não tem esse espaço vazio em relação a Angola?
R. - Eu tenho. Fica sempre. Há sempre um lugar em nós, um bocado em nós que está perdido algures, não no espaço cósmico. Sabemos onde está. Mas nestas coisas tem de haver alguma racionalidade. No jogo entre o espaço do possível, do fazível e do desejável, é preciso encontrar algum realismo. A minha mãe tem 93 anos e vive comigo. Eu tenho uma carreira feita aqui que não me passa pela cabeça abandonar de um dia para o outro. A partir de uma certa altura, foi uma escolha que fiz. E foi uma escolha consciente.
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P. - Acha que morreu de desgosto?
R. - O meu pai morreu de tristeza. Interiorizava muito as coisas. Escrevia muita poesia. Tinha uma vida interior muito intensa. Acabou por ficar num estado de tristeza e de desconsolo que não teve retorno.
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Quando regressou a Angola?
A primeira vez que regressei a Angola fui com o então procurador-geral da República, conselheiro Cunha Rodrigues, em 1997, depois voltei lá com outro procurador-geral, o conselheiro Pinto Monteiro, e depois a seguir à morte do João. Ele foi enterrado cá, mas as cerimónias do sétimo dia foram feitas lá. Depois disso fui lá mais uma vez.

Que país é que encontrou?
Encontrei o suficiente para ficar em paz com a minha identidade, mas obviamente encontrei um país diferente daquele que deixei há quase 40 anos. As coisas mudam. Há uma evolução necessária em Angola como em qualquer outro lugar. O que me faz alguma confusão às vezes é não encontrar os lugares que conheci. Passar por uma rua e não a reconhecer. Há muros muito altos por razões de segurança e há zonas muito descaracterizadas.

A casa onde vivia ainda existe?
As casas onde vivi ainda existem. A casa onde passei a infância, aquela a que estou mais ligada, é uma casa na Rua João das Regras.





Há coisas mais importantes do que o sucesso na carreira: como é que se faz as pazes com o país que nos matou o irmão? Como é que se conta a um miúdo de três anos que os pais foram assassinados?
EXPRESSO.SAPO.PT

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NICOLAU SANTOS


Texto

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