terça-feira, 25 de dezembro de 2018

“The Ballad of Bonnie and Clyde” by Bonnie Parker


To many ordinary citizens during the Great Depression, bank robbers were seen as victims of injustice driven to commit crimes, folk heroes wreaking vengeance on a callous economic system. Thenotoriety of the Barrow Gang (“Bonnie and Clyde”) was bolstered by wild shootouts with police, spectacular car chases, and the romance of two lovers outside the law. In turn, they courted publicity and cultivated the image of misfit-heroes. Bonnie and Clyde’s “aspirations” were low: they preferred raiding small, isolated banks and did not hesitate to prey on modest stores and marginal businesses. Bonnie Parker sent poems and photographs to newspapers, heralding the Barrow Gang’s exploits and defending her honor. This poem, by Parker, depicted the pair as populist desperadoes, misunderstood and star-crossed lovers driven to a life of crime. Bonnie and Clyde remained at large until a Texas posse ambushed them on May 23, 1934. Dying together in a proverbial hail of bullets—the Texas lawmen pumped some 187 rounds into the couple—helped perpetuate the romance surrounding their short, desperate, and destructive lives.


We, each of us, have a good alibi

For being down here in the joint;

But few of them are really justified,

If you get right down to the point.

You have heard of a woman’s glory

Being spent on a downright cur.

Still you can’t always judge the story

As true being told by her.

As long as I stayed on the island

And heard confidence tales from the gals,

There was only one interesting and truthful,

It was the story of Suicide Sal.

Now Sal was a girl of rare beauty,

Though her features were somewhat tough,

She never once faltered from duty,

To play on the up and up.

Sal told me this tale on the evening

Before she was turned out free,

And I’ll do my best to relate it,

Just as she told it to me.

I was born on a ranch in Wyoming,

Not treated like Helen of Troy,

Was taught that rods were rulers,

And ranked with greasy cowboys. . . .

You’ve read the story of Jesse James

Of how he lived and died

If you’re still in need of something to read

Here’s the story of Bonnie and Clyde.

Now Bonnie and Clyde are the Barrow Gang,

I’m sure you all have read

how they rob and steal and those who squeal

are usually found dying or dead.

There’s lots of untruths to these write-ups

They’re not so ruthless as that

Their nature is raw, they hate all law

Stool pigeons, spotters, and rats.

They call them cold-blooded killers

They say they are heartless and mean

But I say this with pride, I once knew Clyde

When he was honest and upright and clean.

But the laws fooled around and taking him down

and locking him up in a cell

'Til he said to me, "I’ll never be free,

So I’ll meet a few of them in hell."

The road was so dimly lighted

There were no highway signs to guide

But they made up their minds if all roads were blind

They wouldn’t give up 'til they died.

The road gets dimmer and dimmer

Sometimes you can hardly see

But it’s fight man to man, and do all you can

For they know they can never be free.

From heartbreak some people have suffered

From weariness some people have died

But all in all, our troubles are small

'Til we get like Bonnie and Clyde.

If a policeman is killed in Dallas

And they have no clue or guide

If they can’t find a fiend, just wipe the slate clean

And hang it on Bonnie and Clyde.

There’s two crimes committed in America

Not accredited to the Barrow Mob

They had no hand in the kidnap demand

Nor the Kansas City Depot job.

A newsboy once said to his buddy

"I wish old Clyde would get jumped

In these hard times we’s get a few dimes

If five or six cops would get bumped."

The police haven’t got the report yet

But Clyde called me up today

He said, "Don’t start any fights, we aren’t

working nights, we’re joining the NRA."

From Irving to West Dallas viaduct

Is known as the Great Divide

Where the women are kin, and men are men

And they won’t stool on Bonnie and Clyde.

If they try to act like citizens

And rent a nice flat

About the third night they’re invited to fight

By a sub-gun’s rat-tat-tat.

They don’t think they’re tough or desperate

They know the law always wins

They’ve been shot at before, but they do not ignore

That death is the wages of sin.

Some day they’ll go down together

And they’ll bury them side by side

To few it’ll be grief, to the law a relief

But it’s death for Bonnie and Clyde.


Source: Bonnie Parker, “The Story of Suicide: The Ballad of Bonnie and Clyde.”
http://historymatters.gmu.edu/d/5061/

quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

Miguel Torga - Dies Irae

* Miguel Torga

Apetece cantar, mas ninguém canta.
Apetece chorar, mas ninguém chora.
Um fantasma levanta
A mão do medo sobre a nossa hora.

Apetece gritar, mas ninguém grita.
Apetece fugir, mas ninguém foge.
Um fantasma limita
Todo o futuro a este dia de hoje.

Apetece morrer, mas ninguém morre.
Apetece matar, mas ninguém mata.
Um fantasma percorre
Os motins onde a alma se arrebata.

Oh! maldição do tempo em que vivemos,
Sepultura de grades cinzeladas,
Que deixam ver a vida que não temos
E as angústias paradas!

Miguel Torga, in 'Cântico do Homem' 

domingo, 16 de dezembro de 2018

Daniel Filipe - Morna

* Daniel Filipe


É já saudade a vela, além.
Serena, a música esvoaça
na tarde calma, plúmbea, baça,
onde a tristeza se contém.
os pares deslizam embrulhados
de sonhos em dobras inefáveis.

(Ó deuses lúbricos, ousáveis
erguer, então, na tarde morta
a eterna ronda de pecados
que ia bater de porta em porta!)

E ao ritmo túmido do canto
na solidão rubra da messe,
deixo correr o sal e o pranto
– subtil e magoado encanto
que o rosto núbil me envelhece

domingo, 9 de dezembro de 2018

LINGUAGEM Pregar dois pregos de uma só martelada

ONG internacional quer alterar expressões anti-animal. PAN também sugere alternativas em Portugal

RAQUEL ALBUQUERQUE

Atirar o pau ao gato, matar dois coelhos com uma só cajadada, pegar o touro pelos cornos ou fazer gato sapato são expressões comuns na língua portuguesa. Têm significados diferentes, mas formas de linguagem que incluem com algum tipo de violência contra os animais. A PETA, uma organização não-governamental fundada em 1980 e com sede nos Estados Unidos, lançou esta semana uma campanha controversa que sugere alterações a este tipo de expressões. O PAN vê na iniciativa um “sinal bastante positivo” e dá alguns exemplos de alternativas a expressões portuguesas.

Pegar um touro pelos cornos 
→ Pegar uma flor pelos espinhos

Pregar dois pregos de uma só martelada ou atirar a comida ao gato são duas soluções possíveis que o partido com assento parlamentar tem partilhado nas redes sociais. “Há expressões que usamos desde pequenos e só anos mais tarde nos questionamos sobre o seu conteúdo. Portanto, em causa está uma mudança de linguagem antiviolência contra os animais. Esta campanha é um sinal de evolução e a prova de que a sociedade civil, as organizações e as ONG se movimentam nesse sentido”, defende Francisco Guerreiro, coordenador da comunicação e membro da comissão política do PAN.

Avançar para algum tipo de iniciativa legislativa está, no entanto, fora de causa, garante o responsável. “Achamos que seria contraproducente porque o objetivo não é condicionar a liberdade de expressão ou a criatividade. A evolução que tem existido está baseada em diálogo.” É por isso que as redes sociais, sobretudo o Facebook, são a forma de comunicação ideal: ajudam a manter um tom informal levando as pessoas a questionar o conteúdo de expressões que sempre utilizaram.

Foi também através do Twitter que a PETA (Pessoas pelo Tratamento Ético dos Animais, em português) lançou uma campanha apelando a que se deixe de usar linguagem antianimal nas expressões idiomáticas. “As palavras importam e à medida que o nosso entendimento sobre a justiça social evolui o mesmo deve acontecer à nossa linguagem”, escreveu a organização, na passada segunda-feira.

Atirei o pau ao gato mas o gato não morreu → Atirei comida ao gato mas o gato não comeu

O PAN reconhece na sociedade portuguesa uma evolução e uma maior sensibilidade para questões ambientais e para a causa animal. A indignação provocada em 2015 pelo enunciado de um exercício de Físico-Química num caderno de atividades para o 9º ano, que previa que um rapaz atirasse um gato de uma altura de cinco metros, é prova dessa evolução, defende Francisco Guerreiro. “O Diogo largou um gato da varanda do seu quarto a 5 metros do solo. Sabendo que o gato tem de massa 4 quilos, indica qual a intensidade da força aplicada ao gato durante a queda”, lia-se no enunciado. “A própria editora pediu desculpas publicamente e retirou o exercício. Essa evolução tem sido vista nos manuais escolares, nos pais e educadores em Portugal.”

Matar dois coelhos com um só cajadada → Pregar dois pregos de uma só martelada

Nas músicas infantis também têm sido criadas alternativas e o caso mais conhecido é o da canção popular “Atirei o pau ao gato, mas o gato não morreu”. Em muitas escolas já se canta um verso diferente: “Atirei comida ao gato, mas o gato não comeu”, por exemplo. Francisco Guerreiro rejeita que esteja em causa uma atitude “politicamente correta”. O partido vai mais longe e sugere outras alternativas: “Fruta madura é que dá bom sumo“ (em vez de “Galinha velha é que dá bom caldo”) ou “Mais vale dois pássaros a voar do que um na mão”.

“LÁPIS COR DE PELE”

A violência contra os animais é o ponto de partida desta campanha, mas não é o único problema. Muitas expressões idiomáticas são discriminatórias. “Com um olho no burro e outro no cigano” é um dos exemplos. Segundo Raquel Matias, socióloga e investigadora do ISCTE, é nas escolas, nas aulas de cidadania e através de discussões públicas que se deve despertar a atenção para o conteúdo da linguagem. “Quando se usa uma expressão como essa está a reforçar-se a ideia de haver uma característica específica de uma comunidade. É discriminatório e contra a coesão social”, afirma.

Mais vale um pássaro na mão do que dois a voar → Mais vale dois pássaros a voar do que um na mão

“Mais do que um policiamento ou moralismo é preciso discutir o assunto. É preciso perceber que a nossa linguagem é feita de história e cultura. As expressões idiomáticas estão repletas de memória social.” Raquel Matias, que se tem debruçado sobre a linguagem e as migrações, lembra que há expressões ou até designações, como “lápis cor de pele”, que transmitem normas sociais. “Deveríamos falar de lápis cores de pele.”

https://leitor.expresso.pt/semanario/semanario2406/html/primeiro-caderno/sociedade/Pregar-dois-pregos-de-uma--so-martelada

Miguel Sousa Tavares - A morte dos livros

* Miguel Sousa Tavares

É de bom tom começar pela usual declaração de interesses: Luiz Schwarcz é o meu editor brasileiro. Fundador, presidente, alma e coração da Companhia das Letras, que, para grande orgulho meu, é, não sei se a maior em volume de negócios, mas certamente a mais prestigiada editora brasileira — reunindo, entre os seus autores, os clássicos brasileiros, de Guimarães Rosa a Jorge Amado, e os novos, de Milton Hatoum a Chico Buarque. Há uns anos, juntou ao seu já extenso catálogo o da norte-americana Penguin Books, fazendo com que o acervo de autores sob a chancela da Companhia das Letras constitua uma biblioteca de fazer inveja a qualquer bibliógrafo. O Luiz é um editor que verdadeiramente ama os livros, assim como ama a música (foi um dos fundadores da Orquestra Sinfónica de São Paulo), os cavalos de corrida e a mesa com amigos. Foi com ele que pela primeira vez aprendi o que era “pagar a rolha” num restaurante. Foi no Figueira, em São Paulo, assim chamado porque tinha (ou ainda tem?) um imenso pátio onde se comia debaixo da mais extraordinária e frondosa figueira que alguma vez vi. Jantávamos, a convite do Luiz e, além da sua mulher, a historiadora Lilia Moritz, o já citado Milton Hatoum, autor do notável romance “Dois Irmãos” (mas não só), a Fafá de Belém e eu. O Milton, natural da Amazónia, ficou embevecido e admirado quando me viu, depois de consultar o cardápio, encomendar um filete de tucunaré, da trilogia dos peixes do rio Amazonas — tucanaré, pirarucu e tambaqui, os únicos grandes peixes do Brasil, pois que os de mar não prestam, para nós, portugueses, que desfrutamos do melhor peixe do mundo. Mas eu é que fiquei verdadeiramente espantado quando vi o Luiz sacar de um saco com duas garrafas de vinho que tinha trazido de casa, entregá-las ao empregado e dizer: “Sirva estas”. Grande conhecedor de vinhos, ele inventara, aos meus olhos pelo menos, o sistema da “rolha”, que depois vi replicado noutros lados, em que se leva o vinho de casa e só se paga uma quantia simbólica pelo serviço.



ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

Isto para introduzir o personagem, antes da sua mensagem. Na semana passada, o Luiz Schwarcz enviou uma carta aberta a autores, editores, livreiros, leitores, amigos de livros, escrita em inglês e intitulada “Love letters to books”. O pretexto foi a simultânea entrada em processo de catástrofe das duas maiores cadeias de livrarias brasileiras, a Cultura e a Saraiva, uma fechando 40 lojas e a outra abrindo um processo de insolvência judicial, ambas deixando pendentes milhões de dívidas às editoras. Na sua carta aberta, espécie de grito de desespero de credor, mas, acima disso, de amigo dos livros, o Luiz escreve que nos últimos anos o mercado livreiro do Brasil se retraiu em 40% (o mesmo que em Portugal) e que muitas cidades brasileiras estão prestes a ficar sem uma única livraria. E acrescenta este desabafo : “Passei pelo pior momento da minha vida pessoal e profissional quando, pela primeira vez em 32 anos, tive de deixar partir seis empregados que fizeram parte da Companhia e deram uma contribuição vital para o que fomos construindo dia após dia”. E termina apelando para que todos dêem ideias, sugestões, que ao menos comprem livros neste Natal, “para que mostrem algum amor por uma coisa que nos deu tanto durante tanto tempo: o livro”.

O apelo de Luiz Shwarcz não gerou só likes no Brasil. Em parte porque ele coincidiu com o anúncio de que o Luiz, embora mantendo-se presidente da Companhia das Letras, tinha acabado de vender a maioria do capital à Penguin, agora fundida com outro gigante americano da edição, a Random House. E em parte porque pequenos livreiros de pequenas cidades do interior o acusaram de se preocupar apenas com a falência das grandes cadeias de livrarias — às quais as editoras se submeteram ou foram forçadas a submeter-se. Tal como em Portugal. Mas isso é apenas parte da história da morte em curso dos livros: o estado actual da história. O livricídio começa pela oferta, antes de acabar na procura.

É toda uma cadeia que aos poucos nos vai transportando, leve, levianamente, para um mundo de pesadelo, que sempre foi o sonho de todas as ditaduras: um mundo sem livros

Anos atrás, numa Feira de Frankfurt — uma feira de vendas para editores e agentes literários, onde alguns autores são exibidos como rezes numa feira de gado — uma plateia de acabrunhados editores concordava com a iminente morte do livro, enquanto objecto, face ao aparecimento e inevitável triunfo do livro electrónico, o Kindle. Não havia nada a fazer, o inimigo era imbatível, assentiam aquelas avisadas cabeças, imaginado legiões planetárias de leitores em aeroportos, praias, jardins, autocarros, a sacar do seu Kindle e a devorar livros a 50 cêntimos cada um. Nos tempos seguintes, em cada contrato de edição que me apresentavam para assinar, inevitavelmente, lá vinha uma cláusula incluindo direitos sobre a edição online, o futuro irrecusável, juravam, e eu, inevitavelmente, recusava-a. Uma parte por intuição e talvez nostalgia: cresci com os livros como objecto físico, palpável, visível. Cada edição dos meus autores de cabeceira era como uma edição dos discos dos Beatles: tinha um cheiro próprio, a capa era olhada e apreciada mil vezes, acariciada com a mão, o papel era pesado e alisado, o seu lugar na estante era judiciosamente estudado, a sua lombada era fixada para sempre, nada era em vão. Outra parte tinha que ver com um raciocínio de ética económica: o Kindle da Amazon representava a mais devastadora e amoral destruição de uma cadeia de produção que eu já tinha visto. Começava por destruir os empregos e os investimentos ligados à indústria de papel dos livros; depois à parte da impressão, a gráfica; a seguir, à edição; depois, à distribuição; em seguida, com tudo o que tinha que ver com as feiras dos livros, visto que não haveria livros-objectos para apresentar nem para autografar; e, no fim da cadeia, sacrificaria os próprios autores, a quem pagariam uns miseráveis cêntimos por cada exemplar vendido com o falacioso argumento de que se venderiam muitos mais livros visto que seriam muito mais baratos. No final, feitas as contas, apenas o pirata do senhor Jeff Bezos, dono da Amazon, teria acrescentado a sua incontável fortuna, abrigada em paraísos e esquemas fiscais, à custa do talento e do emprego dos outros.

Mas se, contra as expectativas dos avisados crânios, o livro electrónico felizmente se revelou um fiasco, do lado da oferta a nova ameaça são as grandes superfícies de venda de livros que, de facto, matam as livrarias e impõem aos editores condições de sobrevivência insustentáveis. Se ver livros à venda em supermercados já é penoso, pior ainda é saber que é preciso comprar espaços de exposição e entrar em campanhas de promoção ao nível dos descontos em chouriços e detergentes. Mas é assim que estamos.

Mas é assim que estamos porque é assim que está a procura. Já quase ninguém lê livros. Como quase ninguém lê jornais ou revistas. Isto daria tema para todo um outro artigo, para que me falta espaço. Direi apenas, abreviadamente, que as redes sociais têm nisto, obviamente, uma trágica responsabilidade: elas são a maior fonte de leitura actual e a maior fonte de iliteracia funcional. Mas não são a única: a crítica literária que se faz em Portugal (e eu conheço outras) é também altamente responsável, porque não cumpre a sua função essencial de orientar os leitores para o encontro dos livros que lhes podem criar hábitos de leitura. O desporto favorito dos nossos críticos literários é não dizer do que trata um livro. Quanto mais confusa ou inexistente é a história de um romance, mais rebuscada e exaltante é a sua crítica, para no final se concluir que o autor é um génio, o crítico é brilhante e o leitor é um idiota se não entende a genialidade e o brilhantismo de um e de outro e se na próxima vez não voltar a comprar outro livro do mesmo autor. E, desnorteados, os editores botam as frases laudatórias dos brilhantes críticos nas cintas do próximo livro do genial autor e ficam à espera... acabrunhados com os exemplares por vender, devolvidos ao fim de uma semana, por um supermercado perto de si. É toda uma cadeia feita de suicidárias cumplicidades na mediocridade, de arrogantes sentimentos de superioridade, de desnorte editorial, de falta de senso, de coragem e de imaginação, que aos poucos nos vai transportando, leve, levianamente, para um mundo de pesadelo, que sempre foi o sonho de todas as ditaduras: um mundo sem livros.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia
https://leitor.expresso.pt/semanario/semanario2406/html/primeiro-caderno/opiniao/A-morte-dos-livros

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Álvaro Feijó - Varina

 * Álvaro Feijó


Eu mudei de pincel e de paleta
— embora seja a mesma a tinta com que escrevo —
mas mudei, que, de repente,
surgiste diante de mim.
Não é que me perturbes, mas eu sinto
que alguma coisa me comove ao ver-te.
Não é que te examine, porque sei
que me é quase impossível,
que me é mesmo impossível descrever-te.
A tua história, sim? A história que se repete
e é sempre nova porque há sempre gente
que nunca a ouviu
ou que não a quis ouvir.
O cais viu-te nascer!
Corrias, loucamente, pelas retas
intermináveis dos paredões
de cimento e granito,
e em caixotes com cheiro de sardinha
fazias tabogan das linguetas
— o tabogan dos parques infantis
que não pudeste ver.
Assim, faminta e seminua
mas livre como os peixes
fizeste-te mulher!
Depois foi o correr das ruas da cidade,
enrouquecendo a gritar:
— “Quem merca os camarões” …
Depois um que voltou da Terra Nova
e te olhou como fera sequiosa
de carne,
quando o lugre, ao chegar, entrou na doca.
Depois o inevitável!
O luar…
A Senhora dAgonia…
A quentura de Agosto…
E, então,
não era só o peso da canastra,
era o peso dum filho
e a fome de dois para matar,
até que o lugre voltasse
e se esquecesse
o calvário da luta…
Um dia no intervalo da campanha
o sexo falou mais alto
e o coração calou.
Foste dum outro homem e, depois,
de dois,
de três.
Quando ele voltou
encontrou-te perdida
e tu perdeste-o.
Hoje, num outro porto, ainda gritas
o teu pregão.
Quando um homem te encontra fora de horas,
para ele foi sempre um bom encontro…
e. . . “até mais ver” …
Vês! Eu sei a tua história…
(Há tantos que a não sabem!)
E, no entanto,
Dum homem só ou de cem,
num porto do meu país ou num porto de Islândia
Tu surgiste aos meus olhos
como a mesma mulher.

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

Manuel Freire: intervenção, música e poesia



 
  • Manuel Pires da Rocha 


Manuel Freire

O cantor é a voz dos poetas. Leitor e propagandista, useiro (e vezeiro, quando bom) das habilidades que são as da música, é dele a arte capaz de agitar pensamentos e emoções, ocultando-os (sendo preciso) na vibração das moléculas. Manuel Freire é leitor e é propagandista, mestre também no ofício de fundir palavras em melodias. E é também o timbre e o modo de cantar, grave e cheio, terno e incisivo, único e reconhecível entre a multidão de cantores em que, felizmente, Portugal calhou ser fértil.

Há 50 anos, num dos dias de 1968, entrava nas discotecas um pequeno disco de vinil preto de Manuel Freire que era, afinal, todo um programa de acção. As canções tinham por título Dedicatória (poema de Fernando Miguel Bernardes), Livre (poema de Carlos Oliveira), Eles (poema de Manuel Freire) e Pedro Soldado (poema de Manuel Alegre), mas três delas tomaram o nome que lhes foi dado pelos milhares de vozes que as cantaram. Dedicatória passou a ser Se Poeta SouEles tornou-se Ei-los Que Partem, Livre ficou Não Há Machado Que Corte, e por estes nomes se deu cumprimento às cantigas que foram cantadas mil vezes, nos dias mais sombrios como nos mais luminosos. Só Pedro Soldado assim permaneceu, de tão clara ser a condição dos que se haviam de perder, em corpo ou em alma, nas ravinas da Guerra Colonial.

Manuel Freire trazia os flagelos da guerra e da emigração, a presença do povo e a luta pela liberdade para um palco de canções que ameaçava a compostura radiofónica em que reinavam as melodiosas distracções do nacional-cançonetismo. E levava as suas cantigas pelas colectividades, pelos encontros de democratas, pelas reuniões conspirativas onde marcavam encontro os afinados e os desafinados que, juntando vozes, iam somando cantigas às razões das suas lutas.

Como no Ateneu de Coimbra, no início dos anos de 1970, o salão cheio de gente. Era um tempo em que havia já mais canções do que as quatro daquele primeiro disco: Lutaremos Meu AmorSangue Não Dá FlorMenina dos Olhos TristesDulcineia. À entrada da Pedra Filosofal Manuel Freire dá conta, aos presentes, de um constrangimento que lhe tinha sido comunicado pelos dirigentes da colectividade: o Exame Prévio não lhe permite cantar o poema de Gedeão. É, porém, sabido - e ali se confirmaria -, que as canções grandes reagem com surpreendente facilidade aos impedimentos de ocasião, assim haja quem lhes justifique a função. A ordem censória proibia Manuel Freire de cantar, mas não de tocar. Naquele ajuntamento de insurrectos cantaram os que ali estavam, acompanhados à viola pelo silenciado cantor.

Ao longo dos 50 anos que decorreram desde a publicação do primeiro disco, Manuel Freire nunca foi só-cantor-compositor, repartindo-se por ofícios de outros entendimentos, desde a indústria à Sociedade Portuguesa de Autores. Nada que o tenha impedido de cantar em todo o lado, no Continente e nas Ilhas, nos países africanos por cuja independência também foi combatente, nas comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo. Por todo o lado se faz acompanhar por António Gedeão, José Gomes Ferreira, Manuel Alegre, Fernando Assis Pacheco, Eduardo Olímpio, Sidónio Muralha, José Saramago, Vitorino Nemésio e os que mais virão.

Manuel Freire abre o livro, procura o poema, encontra os sons que o saibam dizer. Mas quando canta «não há machado que corte a raiz ao pensamento», há 50 anos como hoje, não se limita a ser a voz do poeta – é a voz da nossa voz.

http://www.avante.pt/pt/2347/argumentos/152240/Manuel-Freire.htm

terça-feira, 20 de novembro de 2018

Ary dos Santos - Tourada

TOURADA (Festival da Canção 1973)



  

TOURADA

Não importa sol ou sombra 
camarotes ou barreiras 
toureamos ombro a ombro 
as feras. 

Ninguém nos leva ao engano 
toureamos mano a mano 
só nos podem causar dano 
espera. 

Entram guizos chocas e capotes 
e mantilhas pretas 
entram espadas chifres e derrotes 
e alguns poetas 
entram bravos cravos e dichotes 
porque tudo o mais 
são tretas. 

Entram vacas depois dos forcados 
que não pegam nada. 
Soam brados e olés dos nabos 
que não pagam nada 
e só ficam os peões de brega 
cuja profissão 
não pega. 

Com bandarilhas de esperança 
afugentamos a fera 
estamos na praça 
da Primavera. 

Nós vamos pegar o mundo 
pelos cornos da desgraça 
e fazermos da tristeza 
graça. 

Entram velhas doidas e turistas 
entram excursões 
entram benefícios e cronistas 
entram aldrabões 
entram marialvas e coristas 
entram galifões 
de crista. 

Entram cavaleiros à garupa 
do seu heroísmo 
entra aquela música maluca 
do passodoblismo 
entra a aficionada e a caduca 
mais o snobismo 
e cismo... 

Entram empresários moralistas 
entram frustrações 
entram antiquários e fadistas 
e contradições 
e entra muito dólar muita gente 
que dá lucro as milhões. 
E diz o inteligente 
que acabaram as canções.
                   
José Carlos Ary dos Santos, As Palavras das Cantigas 
(organização, coordenação e notas de Ruben de Carvalho). 
Lisboa, Edições Avante, 1995.
                              
                 
Escrita no final de 1972, "Tourada" foi a canção escolhida para representar Portugal no Festival Eurovisão da Canção 1973, interpretada em português por Fernando Tordo.
A canção tem uma letra que foi claramente entendida em Portugal como uma metáfora em que se comparava a tourada ao decrépito regime ditatorial do Estado Novo, a canção é uma crítica à sociedade portuguesa daquele tempo:
Entram velhas doidas e turistas 
entram excursões 
entram benefícios e cronistas 
entram aldrabões 
entram marialvas e coristas 
entram galifões 
de crista.
                 
Na letra faz-se uma crítica ao snobismo e hipocrisia da sociedade:
Entram cavaleiros à garupa 
do seu heroísmo 
entra aquela música maluca 
do passodoblismo 
entra a aficionada e a caduca 
mais o snobismo 
e cismo...
              
Critica-se as contradições existentes na sociedade e os lucros de alguns:
Entram empresários moralistas 
entram frustrações 
entram antiquários e fadistas 
e contradições 
e entra muito dólar muita gente 
que dá lucro as milhões.
            
Na letra faz-se uma alusão à chamada Primavera marcelista, uma pretensa mudança efetuada no governo de Marcelo Caetano (mudavam os nomes, por exemplo, censura passou a ter o nome de "exame prévio", mas na prática pouco mudava):
estamos na praça da Primavera.
Não se percebeu como é que a censura vigente na época, não conseguiu entender a mensagem transmitida pela letra que era uma crítica mordaz/sátira ao regime.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Tourada_(canção)
                  

          A contestação ao Estado Novo e o 25 de Abril foram os momentos mais marcantes no que diz respeito à música de intervenção. Temas como "Grândola Vila Morena", de Zeca Afonso ou a "Tourada" de Fernando Tordo, tornaram-se intemporais e fizeram história.
Canções de resistência ou canções de protesto, consideradas após a revolução de Abril de 1974 como canções de intervenção são constituídas por poemas e músicas de denúncia de um presente de repressão e surgem como luta por um mundo melhor. Sem finalidade comercial, recorrendo, com frequência, à balada , possuem uma mensagem universalista, livre de qualquer constrangimento social.
A canção de intervenção tem um valor pedagógico notável, na forma como alerta o povo para as prepotências existentes, que constrangem o  seu dia-a-dia. Não raro, a verdadeira mensagem era "camuflada" nos seus versos para poder passar pelo crivo da censura.
Carla Brito, “A canção enquanto arma - Música de intervenção” in Estórias da História, 23-03-2011
         
                     
Em 1973, mais uma vez ganhou o Festival RTP da Canção com “Tourada”, uma das letras mais polêmicas entre as que ganharam o grande prêmio em toda a história do Festival. Na verdade, entre as concorrentes deste ano contavam-se quatro canções de autoria de Ary dos Santos.
É preciso abrir aqui um parêntesis na trajetória de Ary dos Santos para comentar-se que embora ele tivesse encontrado vários intérpretes para seus poemas, nenhum deles – nem mesmo Amália Rodrigues – foi tão importante para sua obra como poeta como o foi Carlos do Carmo. Entre as inúmeras colaborações entre os dois destaca-se, sobretudo, “Estrela da Tarde”, uma das mais belas composições de toda a música portuguesa.
Carlos do Carmo define assim Ary dos Santos (Ary dos Santos: O Homem, o poeta, o publicitário: fotobiografia, Alberto Bemfeita, Lisboa, Caminho, 2003. p. 81) : “... insubstituível, não me refiro só ao aspeto afetivo, à amizade, refiro-me igualmente ao lado profissional. Tenho a convicção de que, num momento muito particular da nossa história (Abril de 74) – sendo um momento de libertação, tem cicatrizes ainda hoje difíceis de avaliar dada a sua proximidade, e que envolvem inúmeras contradições de sentimentos, ódios, paixões, encantos e desencantos – Zé Carlos fez com que a canção portuguesa simples, a canção do quotidiano, que poderão chamar de ligeira, nunca mais fosse a mesma desde que resolveu escrever para ela. ... Tenho vindo a constatar que algumas das pessoas que escrevem para canções, têm talento, mas estão muito aquém do que ele escrevia.
… Dizia que era poeta e nada percebia de música, mas de facto ele era um músico excelente, pela capacidade que tinha de entender a harmonia das palavras nas canções.” E ainda: “O Zé Carlos e o Fernando Tordo formavam uma dupla perfeita. … Esses casamentos são raros, só acontecem a espaços. Por exemplo, no Brasil houve duplas assim: a do Vinícius de Morais com o Tom Jobim ... O Zé Carlos tinha um outro dom importante. Na Lisboa dele, para além do figurino arquitetónico da cidade, estava sempre associado o elemento humano.
As figuras de Lisboa, que ele sabia descrever espetacularmente, devia-se à sua grande capacidade de observação. Ele era o que nós vulgarmente chamamos de umaesponja. Absorvia tudo o que o cercava.
... Outra das suas facetas por que sempre tive enorme apreço era o lado frontal. A frontalidade com que assumia a sua homossexualidade: sem tabus nem esquemas. Assumida numa época muito difícil, de grandes transformações sociais na vida portuguesa. Foi uma atitude de coragem que o dignifica e que não é para qualquer homem.”
                   
in Bulletin of the Faculty of Foreign Studies, Sophia University, nº 40, 2005.

http://folhadepoesia.blogspot.com/2013/08/tourada-festival-da-cancao-1973.html

domingo, 18 de novembro de 2018

Jorge de Sena - Noutros Lugares

* Jorge de Sena


Não é que ser possível ser feliz acabe,
quando se aprende a sê-lo com bem pouco.
Ou que não mais saibamos repetir o gesto
que mais prazer nos dá, ou que daria
a outrem um prazer irresistível. Não:
o tempo nos afina e nos apura:
faríamos o gesto com infinda ciência.
Não é que passem as pessoas, quando
o nosso pouco é feito da passagem delas.
Nem é também que ao jovem seja dado
o que aos mais velhos se recusa. Não.

É que os lugares acabam. Ou ainda antes
de serem destruídos, as pessoas somem,
e não mais voltam onde parecia
que elas ou outras voltariam para sempre
por toda a eternidade. Mas não voltam,
desviadas por razões ou por razão nenhuma.

É que as maneiras, modos, circunstâncias
mudam. Desertas ficam praias que brilhavam
não de água ou sol mas solta juventude.
As ruas rasgam casas onde leitos
já frios e lavados não rangiam mais.
E portas encostadas só se abrem sobre
a treva que nenhuma sombra aquece.

O modo como tínhamos ou víamos,
e que com tempo o gesto sempre o mesmo
faríamos com ciência refinada e sábia
(o mesmo gesto que seria útil,
se o modo e a circunstância persistissem),
tornou-se sem sentido e sem lugar.

Os outros passam, tocam-se, separam-se,
exactamente como dantes. Mas
aonde e como? Aonde e como? Quando?
Em que praias, que ruas, casas, e quais leitos,
a que horas do dia ou da noite, não sei.
Apenas sei que as circunstâncias mudam
e que os lugares acabam. E que a gente
não volta ou não repete, e sem razão, o que
só por acaso era a razão dos outros.

Se do que vi ou tive uma saudade sinto,
feita de raiva e do vazio gélido,
não é saudade, não. Mas muito apenas
o horror de não saber como se sabe agora
o mesmo que aprendi. E a solidão
de tudo ser igual doutra maneira.
E o medo de que a vida seja isto:
um hábito quebrado que se não reata,
senão noutros lugares que não conheço.



sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Se houvesse Correios em Caria, mandava esta carta para Belém


16/11/2018 
por Fernando Camilo Ferreira

Sr. Presidente,

Escrevo-lhe de Caria, vila de mais ou menos 800 habitantes, no Concelho de Belmonte, à beira da Serra da Estrela. A vida aqui é boa. Aqui, tudo o que a terra dá é bom. O resto, nem por isso.

Anunciaram-nos há pouco que a GNR vai passar a funcionar apenas das 9 às 5, para assuntos administrativos. A mim parece-me mal. Por um lado porque, se é para tarefas administrativas, não precisamos da GNR: Temos alguns rapazes e algumas raparigas que ainda não foram para a Suíça, sequer para Lisboa, nem mesmo para a Covilhã. Sabem mexer num computador e, por um salário modesto, podem cumprir as tarefas administrativas que a GNR vai cumprir. É só poupança para o Estado. Só em fardas, bote-lhe a conta. E em pistolas, que ainda por cima escusam de ser roubadas, que é uma coisa que acontece, nem se fala. Para não falarmos no quartel que, só em luz, deve custar para cima de um dinheirão. Tenho a certeza de que a Junta arranja lá uma salinha para os pequenos, como já fez para instalar uma espécie de Correios que é o que temos desde que fecharam os verdadeiros.

Aqui tudo fecha. Quer ver? Temos um Centro de Saúde, com um médico dedicado, competente e paciente, que é o que se quer. Ele farta-se de dizer, como na televisão, que temos de nos vacinar contra a gripe. Mas no Centro não há enfermeiro e, portanto, não há quem dê a injecção. Quer dizer, não há sempre, que à Terça-feira vem cá uma senhora colher sangue para as análises que o Doutor manda fazer e acho que também dá injecções. A senhora enfermeira, acho que é enfermeira, trabalha para uma empresa muito grande, a quem o Governo paga para fazer o que o Governo não quer, ou não pode fazer por nós. Dizem que sai mais barato, mas eu duvido. E, quando tínhamos enfermeiro no posto, ele dava as injecções, fazia curativos, ajudava os mais velhos e evitava um grande gasto em ambulâncias para ir às urgências à Covilhã de cada vez que alguém escorregava na calçada. Se calhar, se fizessem as continhas todas, ia-se ver e até saía mais em conta.

Como já disse, também fecharam os Correios. E, agora, também fecharam os de Belmonte. Agora, se quisermos ir ao correio, temos de ir à Covilhã. São 13 km. O que não há é transportes. Há tempos, fecharam a linha do comboio da Beira Baixa, e perdemos o transporte que tínhamos para a Covilhã ou para a Guarda. Um taxi para a Covilhã custa para cima de 17€, 34€ com a volta. E, ainda por cima, temos de ajudar a pagar os transportes lá de Lisboa e do Porto, uma coisa que eles lá têm, passe social ou lá o que é. Veja o Senhor que, dantes, quando os Correios pertenciam a todos e davam lucro, uma carta era deitada no correio num dia e, no dia seguinte, estava aqui na caixa de cada um. Agora, a conta da água, para vir de Belmonte a Caria, 7 quilometrozitos de coisa nenhuma, demorou, em Outubro, 11 dias e toda a gente, que por aqui é quase sempre de boas contas, passou pela vergonha de pagar fora do prazo.

A GNR aqui faz-nos muita falta. Os soldados já não são como eram dantes, assim macambúzios e barrigudos. Coitados, não sabiam mais. Não senhor. Agora são assim uns rapazes bem apessoados (e raparigas também, já mo afiançaram, mas aqui nunca apareceu nenhuma, mas eu cá acho bem), de boas falas, muito amigos de ajudar quem precisa. E, com aqueles carros a dar a volta à vila, com a pistola no cinto, sempre metem respeito.

E depois há outra coisa. Nós precisamos de muita coisa, nestas terras. Mas aquilo de que mais precisamos são pessoas. Gente nova. Os Correios, a GNR, um enfermeiro, um ou dois professores. Porque precisamos de que a menina dos correios se embeice por um soldado da GNR, que o enfermeiro engrace com uma das professoras, e que se volte a namorar na nossa terra. Disso é que precisamos.

É por isso que lhe escrevo. Para lhe pedir um favor. Aí em Lisboa há muitos soldados da GNR. Se precisarem de mais soldados noutro sítio, mandem os que aí estão. Eu também gosto de ver a fanfarra da GNR a desfilar à frente do carro do Sr. Presidente. Mas, em tempo de necessidade, vão-se os anéis e fiquem os dedos. E os anéis são os seus tocadores de charamelas e timbales. Os dedos são os nossos soldados, que são hoje a única recordação que temos de que aqui também é Portugal.


https://aventar.eu/2018/11/16/correios-em-caria/#more-1294731

terça-feira, 13 de novembro de 2018

Óscar Lopes - Todos os amores são de perdição

13.11.2018 às 8h00

Na primavera de 1955, Óscar Lopes, preso nos calabouços da PIDE no Porto, escreveu uma carta/ensaio de amor agora revelada
ANTÓNIO PEDRO FERREIRA
Carta/ensaio de amor escrita há 63 anos por Óscar Lopes quando estava preso nos calabouços da PIDE no Porto, encontrada agora no meio de papéis do espólio do professor e ensaísta, revela uma intensa digressão filosófica sobre o conceito de amor

texto
foto

De Óscar Lopes há ainda uma imensa história por contar, radicada, por exemplo, na escassa poesia publicada pelo professor e ensaísta (1917-2013) e na muita poesia que se lhe adivinha em todo o seu percurso de intelectual empenhado, marcado por um grande fascínio pelo saber científico, pelas matemáticas, pela linguística ou pela literatura. O seu espólio continua a ser estudado e descoberto. Pelo meio aparecem preciosidades, como a carta/ensaio de amor que se supõe ter sido escrita na primavera de 1955. Estava então preso nos calabouços da PIDE no Porto e supõe-se que terá sido dirigida a sua mulher, Maria Helena Madeira. Mesmo se, em rigor, pode ser vista como uma carta de um amor imenso, intenso, dirigido à mulher como ser global.
Descoberta por Manuela Espírito Santo, autora de “Retrato de Rosto”, a fotobiografia de Óscar Lopes publicada no final do ano passado, a carta deambulava, sem rumo, sem data, local ou destinatário, numa torrente de papéis constituída por notas de apoio às aulas, fichas de leitura, correspondência, manuscritos e tudo o mais que preenche o acervo do professor. A única referência ao ensaio de amor até agora encontrada deve-se a Eduardo Prado Coelho, numa carta datada de 2 de maio, muito provavelmente escrita na década de 1960.

Reprodução de uma das folhas datilografadas do texto de Óscar Lopes
“Dantes o espaço não tinha um centro. Ganhou-o agora; um olhar, um remoinho de coisas inapreensíveis a que chamo tu. Mas é um centro inquieto. És tu, ou talvez antes, qualquer coisa que só alcanço por ti. É, sob essa voz estridente de desespero e disfarce, uma outra voz inaudível mas infinitamente certa. É, sob esses gestos de fuga e atordoamento, o medo que para ti represento, um medo afinal ao encontro, ao impossível encontro de dois mundos condenados à incoincidência”.
Começa assim uma carta que, poucas linhas abaixo, proclama: “Sabemos que o amor é sempre de perdição por essência, que nunca o podemos medir com a vida; sobra sempre aquele resto que tanto dói e nos revolta sem causa. E a impossibilidade moral de comunhão física entre ambos dá-nos, por isso, ao menos, a imensa e difícil alegria trágica de viver a incomensurabilidade do amor, sem ser preciso romanceá-lo. Não confundimos a tragédia de essência com as fórmulas romanescas; o monte dos vendavais está-nos no sangue”.
À sensação de totalidade junta-se a noção de perda, porque àquela a quem se dirige (“Tu és o tu que digo a tudo o que tenho amado”), não pode deixar de oferecer palavras intensas como estas: “Amo-te como se tem um enorme desgosto.”
Pouco depois, acrescenta: “Quero-te porque existes, porque não posso enganar-me, que eu amo como só se pode amar com a certeza de estar certo; mas tudo o que tem valor neste mundo é filho de um amor de suor e agonia, sobre a cama de todo um infinito a separar-nos, e a ligar-nos por isso mesmo”.

Óscar Lopes junto da sua biblioteca
A intensidade do amor plasma-se numa constatação: “Amei sempre em tudo, e em qualquer corpo, o teu sorriso em mim já tão antigo.” Ciente de que “vivemos num mundo feito para deuses, mas não somos deuses”, Óscar Lopes prossegue: “Tu és hoje para mim o verso, a frase, a certeza fixada, a evidência da nossa divindade humana e real, pulverizada em tantos instantes a reaver. És o alfabeto com que leio a presença real no mundo de tudo o que os mitos prometem sem saber o que dizem.”
Àquele rosto “que dá expressão e sentido a tudo quanto existe”, o autor assegura: “Eu amo, porque te amo (e amo neste meu amar-te) toda esta leva de condenados à morte que temos sido desde as células mais antigas; e quando te beijo sem boca, que é o que faço todos os momentos, quando as minhas mãos se fazem olhar e te poisam levemente no corpo, há a amargura de um fim que é mais do que o nosso; é uma cólera represa a conspirar contra todas as cruzes dos cemitérios.”
Certo de que “não existe o que se chama um amor feliz (seria um contentamento apenas contente)”, parte desta evocação de Camões para a constatação de que “a nossa gloriosa espécie inventou o amor”. Porém, prossegue mais adiante: “tudo o que na terra e no mar nos aturde e delicia de mistério não basta, como imagem, para traduzir esta tão simples, e até imaginária explosão do teu corpo, num rito a que renuncio, mas que, simples amor, se me faz consciência.”
Há um amor absoluto a percorrer aquelas páginas datilografadas onde se escreve: ”Não existo como Adão masculino, porque nunca estarei completo fora de uma identidade contigo que, no entanto, passa pelo meu desejo, portanto pela evidência de seres radicalmente outra como a luva na mão. E não existo como Adão de Eva incluída, porque (ai de nós!) há entre ti e mim, como entre todos os que também dizem eu (e não sei amar como a ti), toda aquela infinita distância tu-eu que muda de sentido para cada um de nós mas subsiste sempre como relação invencível”.
Já muito perto do final da longa carta/ensaio, Óscar Lopes desabafa: “Odeio e estilhaço todos os espelhos em que me veja direta ou inversamente contente, e até em que simplesmente me veja (eu que não existo), na epopeia de uma matéria humanizada cuja eloquência mais viva é hoje a dos seus ritmos.”
A concluir, um apelo: “Ajuda-me a fazer essa alma. E que o teu sorriso tão antigo, sorriso de toda a mãe, irmã, namorada que me resta, me olhe desde essa esperança, a mais inominável e a mais certa, a quem emprestaste o teu rosto.”

A carta com as emendas do professor e ensaísta
A carta foi agora divulgada num opúsculo editado pela Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto, da qual Óscar Lopes foi ativo dirigente. Contém um posfácio de José Manuel Mendes e um prefácio de Lídia Jorge. Aí, a escritora sublinha que o professor e ensaísta “produziu um texto misto, que parece ter sido escrito em estado de êxtase, dirigido não a uma mulher concreta mas a uma mulher total, presente e ausente, passada e futura, amante, amada, filha e mãe, seu destino e sua própria causa, o que significa, e o texto várias vezes o refere, “tratar-se de uma torrente de escrita dirigida à Mulher Total, uma conceção próxima da forma como os neoplatónicos a descreviam e de como os românticos mais evanescentes a concebiam”.